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Deixa-me em paz.

por Fernando Lopes, 19 Set 17

Deixa-me em paz. Deixa-me em paz gorda, para ir para a cama contigo é preciso ter carta de pesados. Não te chegues a mim com esse hálito bafiento, quando te aproximas não acendo o cigarro com medo que tudo vá pelos ares. Não me olhes com esses olhinhos mortiços, nunca sei se estou a fitar gente ou um peixe. Tira a mão do meu ombro,feiosa, a camisa é lavada. Não te esfregues em mim, não suporto esse odor a bedum. Sim, vamos casar, eu, tu e os teus gatos, o apartamento a feder a mijo, tanto que só me apetece vomitar. Vamos ser psicóticos, ter discussões, insultar-nos. Vamos foder frente àquele armário espelhado de que tanto gostas para que eu possa ficar murcho só de ver o teu reflexo. Vamos beber até cair, vamos ser muito, muito felizes.

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Demasiado longe, há demasiado tempo.

por Fernando Lopes, 14 Abr 17

Fugiste-me, e provavelmente foi a atitude mais sensata que tomaste em toda a tua vida. Não sou flor que se cheire, carrego mais angústias, incertezas, que sorrisos. Não te traria a pacatez que desejavas, difícil imaginar-me com três ou quatro ranhosos na mesa do chinês a depenicar o menu «Família Feliz». Pouco tenho para partilhar senão esta pedra invisível que carrego, um Sísifo de pacotilha. Também não te digo que queria viver contigo até sermos velhinhos, pela razão simples que nunca envelheceste, foste, és, e serás sempre a minha menina, nem que os ossos se te curvem com o peso da idade, os olhos percam o brilho com as cataratas. Uma menina, a minha menina. Estamos demasiado longe, há demasiado tempo. Talvez nos tenhamos transformados em pessoas diferentes, talvez se nos cruzássemos nada mais existisse que uma memória. Ou talvez não. É esse o encanto, serás sempre o meu «e se...» favorito.

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PlayGirl.

por Fernando Lopes, 29 Dez 16

Passas por mim, pernas magras e longas, longo cabelo cor de fogo, olhos índigo, e sorris. Sei que a sedução é o teu jogo, algo que fazes inconscientemente. Não brinques com corações velhos, marcados por cicatrizes, que doem e choram, e só às vezes brilham. Lança o teu feitiço a quem a ele possa sobreviver, para quem sejas apenas mais uma estória, acaso feliz.  Vai playgirl, bela, jovem, e vê o que os meus olhos te falam: a sedução é um jogo onde sempre alguém perde, tem cuidado em não destroçar quem é ainda mais frágil que este que te olha e retribui o sorriso, para quem não passas apenas de uma beleza que oprime, e ao mesmo tempo, enternece.

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Monstros debaixo da minha cama.

por Fernando Lopes, 19 Dez 16

Muitas vezes, muitas noites, tenho monstros debaixo da minha cama. Não como os das histórias infantis, assombrações apenas minhas, que só a mim atormentam. Pensamentos perdidos, projectos que não deram certo, vitórias, fracassos, humilhações, medos. Nem sempre se manifestam, as mais das vezes permanecem silenciosos, quietinhos, a fazer de conta que não existem. Não me assombram quando a noite está escura, aproveitam-se da minha insónia, dos meus temores, e atacam. Faço-me de forte, tento ignorá-los fazendo de conta que ali não estão, mas não desistem. Passei a noite a tenter enxotá-los. Inútil, continuaram a atacar, a servir-me memórias que pensava esquecidas, angústias velhas, velhas. E tu? Também tens monstros debaixo da cama?

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Não sei bem quando as paredes do nosso quarto me começaram a esmagar, quando o espaço de intimidade passou a cela, o momento em que o edredão ganhou peso de grilheta. Já nem recordo quando partilhá-lo se tornou um fardo. Num tempo há muito tempo cresceram barreiras invisíveis, o olho de Hórus cegou. Hoje, estamos juntos e separados, vivendo em mundos e realidades alternativas que nunca se encontram. A cama, demasiado grande para dois, tornou-se pequena para os nossos sonhos, tão-somente porque nunca neles nos encontramos. Debaixo dela existem monstros assustadores de que nunca falamos, por cima, o amor que fazemos é a mecânica do prazer a sobrepor-se à poesia do amor. É uma cama grande, preparada para dois, onde não caibo.

 

(*) de um mote lançado pelo Filipe.

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Artur.

por Fernando Lopes, 15 Set 16

Mal abrem a porta entra-me pelas narinas aquele odor característico dos lares, uma mistura indefinível de urina, lixívia, e desinfectante perfumado. Um velho caminha sem rumo apoiado por duas bengalas. Pelo corredor circulam as auxiliares, bata rosa, as enfermeiras de branco vestidas, pobre imitação de querubim. Ao fundo do corredor a enfermaria, de onde uns irão sair recuperados, outros para os tratos de um qualquer gato pingado. Desço o elevador para a sala de convívio e refeitório. É hora de almoço, apenas dois resistentes no sofá a olhar hipnotizados para o ecrã da televisão. Na sala de refeições a comida tem o aspecto de papa. Sei que assim é porque a maioria dos comensais há muito perdeu os dentes ou mais não tem que uma placa que obstinadamente lhes dança na boca como se tivesse vida e vontade própria. Muitos têm uns enormes babetes plásticos, como se fossem crianças ou estivessem numa qualquer festa da lagosta.

 

A vida num lar é como jogar à roleta russa sem arma.

 

A um canto uma senhora numa cadeira de rodas. Muito encolhida e enrugada, já pouco maior é que uma criança de seis ou sete anos. Sobre o colo um xaile rosa, talvez ainda feito à mão, talvez uma peça barata comprada nos chineses. A cabeça tomba-lhe sobre a esquerda enquanto murmura qualquer coisa incompreensível. Depois desata a gritar:

 

- Ó Artur, Artur! Ó Artur.

 

Faz isto uma meia-dúzia de vezes, pára e logo recomeça. Alguém me conta que chama pelo marido, morto há mais de vinte anos. Assim que recomeça a gritar alguém lhe diz:

 

- Estou aqui, está sossegada.

 

Sorri tranquilizada, e de um modo só seu, regressa aos braços de Artur.  

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03:30.

por Fernando Lopes, 11 Set 16

É sábado à noite, 3:30 da manhã. Inebriado pelo álcool, penso encontrar-te. Sentar-nos-íamos numa mesa qualquer de um bar fora de moda, um olho no passado, outro no que ainda nos falta viver. Farias como sempre, bebericando o primeiro gole da minha cerveja, acendendo um cigarro, e com ar de diva, colocá-lo-ias na minha boca, húmido dos teus lábios, eu feliz, como se recebesse um fluído de vida. Falaríamos dos amores passados, do nosso passado que é sempre presente, das pessoas ao mesmo tempo estranhas e íntimas em que nos transformamos. Há muito não partilhamos a mesma cama, e, no entanto, ainda a sinto com o teu calor. Falhamos? Destino? Cair-me-iam pelo rosto lágrimas tão indefiníveis como pequenas gotas de orvalho. Não sei se choro pela alegria do que foi se pela incerteza do que há-de vir.

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Eu e o meu amigo «Jim Beam» (III).

por Fernando Lopes, 20 Jun 16

Combinámos que iria passar por casa dela, na Rua do Almada. Outrora local de venda de ferragens, maquinaria e material de construção, a estreita rua tinha-se transformado primeiro numa zona de bares e restaurantes. Depois os velhos moradores – e velhos não é eufemismo – tinham sido convencidos a saírem dali. As suas modestas casas deram lugar a apartamentos com interiores de design e materiais invulgares a preços exorbitantes.  De duas casas fazia-se uma com enorme sala de 80 m2, cozinha americana e essas pimpineiras. Artistas, boémios, jornalistas, poetas e outras supostas pessoas de sucesso queriam lá morar, ver e serem vistos, saltar de bar em bar, restaurante em restaurante, uma espécie de colibris que oram tocam nesta flor, ora noutra, sem verdadeiramente apreciar nenhuma. Sítio merdosamente na moda para o meu gosto, mas como a Joana é arquitecta de sucesso, apenas uma opção previsível.

 

Estacionei o carro em cima do passeio, como todos por ali fazem e fiquei à espera que descesse. Meia-hora passada, dei um toque para o telemóvel. Talvez se tivesse esquecido, ou mais previsivelmente, se tivesse acagaçado e desistido. Não seria a primeira vez que me aconteceu, não será certamente a última.

 

Mandei lavar e aspirar o carro. Antes tive de deitar fora as garrafas, maços de cigarros amarrotados, beatas. O velho Alfa parece sempre uma pocilga, um reflexo da falta de organização do proprietário. Estou farto, restam-me duas opções: ou me vou embora ou subo, bato à porta, e confronto-a com a falta de educação. Caralho, podia ao menos ter telefonado a desmarcar.

 

Mais decepcionado que furioso subo pelas escadas estreitas até ao terceiro e último andar. Esta chiqueza deve ser muito porreira quando tens de carregar as compras do mês. A porta está entreaberta, grito o nome dela. Nada. Bato furiosamente. Nada. Quando começo a descer as escadas algo me diz que devo voltar atrás, verificar se está bem. Empurro a porta. Apartamento imaculadamente decorado, minimalista, um quadro aqui, umas antiguidades ali. Detesto estas casas que parecem andares-modelo onde ninguém real habita. Quando penso em desistir e descer de uma vez por todas apercebo-me de uma enorme mancha vermelha escura a escorrer pelo soalho. Vem do que suponho ser um quarto.

 

A medo empurro a porta e vejo a Joana, deitada, de robe, a cama e o chão inundados de sangue, a garganta com um corte profundo. Em pânico escorreguei na poça de sangue, caí e fiquei com as calças manchadas daquela papa líquida. O sangue já estava ligeiramente espesso, devia estar morta quando cheguei há três quartos de hora. Além disso não vi ninguém a entrar ou sair do prédio. Pensei fugir, depois ponderei. Não tinha feito nada, estava inocente. Peguei no velho Nokia e teclei 112.

 

(*) Revisão e ideia de arranque desta parte by Pseudo.

(**) Podemos fazer algo giro com isto. Contribuam com ideias para o meu mail, está no perfil.

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Eu e o meu amigo «Jim Beam» (II).

por Fernando Lopes, 17 Jun 16

Duas garrafas do meu amigo na noite passada. Beber assim dá cabo de um gajo. Acordei molhado e imerso num forte cheiro a azedo. Para o dizer sem tretas, mijei-me e vomitei na almofada. Quando cheguei ao espelho tinha um novo penteado, cena punk. O vomitado pôs-me um dos lados do cabelo espetado. Porra, efeito gel por vomitado é o mais degradante a que um gajo pode chegar. Tomei banho de água quase a ferver, esfreguei-me até a pele ficar vermelha como se estivesse a desinfectar corpo e alma. Embrulhei os lençóis, cobertura de cama, boxers, pijama. Algodão a 90º.  Foda-se, não bebo mais. This is the beginning of a new era, seu merdas. Passei dois dias a arrumar a casa, a pôr as coisas nos lugares, lavar roupa, arrumar livros, deitar fora o lixo. Uma metáfora prática para «arrumar a vida». Arrumar o que se vê enquanto se organiza a cabeça.

 

Há quinze dias que não bebo. Tenho pensado na Joana, uma ruiva com cara de um anjo, corpo de demónio e esperta comó caraças. Atraiu-me bastante, mas estava sempre demasiado preocupado com o que iria beber a seguir para lhe dar importância. Acho que me disse que estava só, vou ligar ao Luís a confirmar, pode ser que aceite vir jantar comigo. O mais provável é dizer-me que está ocupada e me estique o dedo do meio enquanto me dá a tampa. Que se lixe, mais tampa menos tampa consigo contribuir para uma cadeira de rodas de um paraplégico.

 

- Joana? Provavelmente não te lembras de mim. Como estás?

 

- Fernando, ‘tás bem?

 

- (Foda-se, lembra-se do meu nome) Olha Joana, vou ser curto e grosso. Deixei de beber, tenho pensado em ti. Querias convidar-te para jantar e prometo não te embaraçar.

 

Fez-se uma longa pausa.

 

- Não sei se deva.

 

- Porra, o que é que tens a perder? Na pior das hipóteses acrescentas o meu nome à lista de gajos a evitar a todo o custo.

 

Surpreendentemente, o pedaço de pecado ruivo aceitou. Estou tão excitado como se tivesse 15 anos.

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Tão lindo que dá vontade de comer.

por Fernando Lopes, 10 Jun 16

Manuel ficou órfão aos seis meses, um daqueles momentos trágicos que ocupam cinco linhas nas páginas dos jornais. O pai adormeceu ao volante, meteram-se debaixo de um camião. Os pais tiveram morte imediata tendo ele sobrevivido quase incólume.

 

Ficou desde sempre com a avó Guta, viúva e único parente ainda vivo. D. Augusta gostava de homens gordos, já o seu falecido pesava mais de 120 quilos. Foi desde pequenino empanturrado com bifes e batatas fritas, doces e mais doces, pizzas e hambúrgueres. Gordinho, a avó dizia sempre enquanto lhe apertava as bochechas: tão lindo que dá vontade de comer.

 

Na escola primária sofreu as sevícias habituais aos gordos. Badocha, gordo, unto, chamaram-lhe de tudo. Apanhou, foi gozado, ignorado. Deprimido, refugiou-se na comida da avó e engordou. Engordou tanto, que 12 anos e 90 quilos depois começou a ter dificuldades de locomoção e negava-se a ir à escola.

 

Augusta, professora primária reformada propôs-lhe que continuasse os estudos em casa.

 

A velha professora abre a arca frigorífica e tira de lá um braço decepado. Coloca-o sobre o mármore e tenta afastar o mindinho dos outros dedos. O frio tem esse efeito cola, como quando se tiram os bolinhos de bacalhau do congelador e estes se encontram unidos pelo gelo como siameses, difíceis de separar. Degelou o mindinho o suficiente para o afastar dos outros. Pegou no cutelo e golpeou. O osso, duro de partir, não cedeu à primeira, separando-se após várias pancadas enérgicas. Sobre a tábua minúsculos pedaços de carne, aquela carne esfarelada e gelada como quando serramos um naco de vitela.

 

Embrulhou em película plástica o braço e dedos restantes e voltou a colocá-lo na arca. Tinha uma pequena assadeira de barro com cebola e azeite. Colocou bem no centro o dedo rechonchudo, abriu o forno e ouviu na sua cabeça o que já lhe havia dito mil vezes: tão lindo que dá vontade de comer.

 

 

 

Para a alexandra g. e todas as outras «alexandras» que dão sentido a este blogue.

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