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Pruridos linguísticos.

por Fernando Lopes, 4 Jan 17

No tempo em que os animais falavam não existia a linguagem formatada, igualzinha, inócua. Habituei-me a tratar um preto por preto, maluco por atolambado, portador de síndrome de Down por mongolóide, coxo por manco, corcunda por marreco, sem que isto significasse nenhum desrespeito pelas pessoas ou suas limitações. Falava-se assim, a linguagem simples do povo, às vezes com piedade, sempre sem maldade. Eu, pelo menos, nunca a tive. Ocorre-se-me isto por as crianças já aprendem na escola esta novilíngua, orwelliana, politicamente correcta. A filha chamou-me à atenção quando contava a «estória» dos meus primeiros cigarros e das que mos venderam, as corcundinhas. Duas primas que tinham um quiosque ali pelos Mártires da Liberdade, deficientes, e a quem assim chamávamos sem vontade de estigmatizar. Vou ali comprar «Provisórios» às corcundinhas e já venho, coisa que tantas vezes disse aos amigos, é para a cria linguagem a evitar. Não tínhamos maldade, dizíamos o que ouvíamos à gente simples, trabalhadora, que nos rodeava. De tanto não querer ferir com as palavras, desapareceram as expressões castiças da minha mocidade. Esta uniformização da língua também tem origem na escola. Os livros falam em frigideiras quando dizemos sertã, chamam às cruzetas, cabides, ao picheleiro, canalizador. Chegará o tempo em que por imposição estranha referir-nos-emos às coisas de igual forma, de norte a sul. Ninguém contabilizará os termos antigos que se perderam, nem se dirá o meu amigo preto, mas o meu amigo negro. Além de redutor, igualitário no mau sentido, é um modo de falar para sempre perdido.

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Por tua causa ando a alugar o bacalhau.

por Fernando Lopes, 30 Set 16

Hora de almoço. Enquanto me dirijo para o trabalho, uma profissional do amor caminha atrás de mim e discute acaloradamente com o seu empresário ao telemóvel. O linguajar da senhora é intenso, e reparem, estou habituado a intensidade desde que de tenra idade acompanhava a avó ao Bolhão. Entre múltiplos, caralhos, foda-se, sai-lhe um putinha que te pariu. Achei ternurento, putinha que te pariu é quase como dizer «a tua mãe não é lá muito séria, mas paciência». Depois remata com um «por tua causa é que ando a alugar o bacalhau». Simplesmente poético. De facto, a transacção comercial vulgarmente conhecida como prostituição, não passa de um aluguer. Não vende, porque isso significava propriedade permanente, hipoteca, o diabo a quatro. Não dá, porque tal seria de borla, arruinaria o negócio, teria de pedir um Plano Especial de Revitalização (PER). Suponho que só dê, mesmo dado, ao manager com quem trocava ideias e a um ou outro amigo de ocasião. De facto, trata-se de um aluguer. Quando um tipo pensa que já ouviu quase tudo, há sempre uma meretriz que nos faz notar que a língua – a falada, está bom de ver – pode ser enriquecida com coloridas definições.

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Mosca de padaria.

por Fernando Lopes, 17 Mar 16

Falávamos de um colega cuja vida amorosa definiria no mínimo como intensa. Uma das camaradas referiu-se-lhe como «mosca de padaria». Perguntei-lhe o que significava, recebi como resposta um «poisa aqui, poisa acolá, mas nunca pára em sítio nenhum». Parece que no Brasil  se referem à «mosca de padaria» como o que tenta com todas e nunca consegue com nenhuma. Seja como for é mais uma bela expressão.

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Continuação.

por Fernando Lopes, 2 Mar 16

Deveres de pai. Fui interrompido durante o almoço pela urgência urgentíssima de comprar um caderno de matemática e transferidor. Como almoço num centro comercial – questão de proximidade e preço, não de gosto – comprometi-me a trazer o que a criança pretendia. Comprei um enormíssimo caderno de matemática, onde Einstein ou Pascal teriam espaço para tratar algumas das suas equações.

 

Após pagar a jovem rapariga despediu-se com um enigmático:

 

- Continuação.

 

Pensei interpelá-la, mas desisti. Não é a primeira, segunda ou terceira vez que alguém de mim assim se despede. Que se quer dizer exactamente com «continuação»? Continuação de boa tarde, boas compras, bom dia, de quê? Alguém me explica o que é que isto quer dizer? Ah, e continuação para vocês, queridos leitores.

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Cheiro a funileiro.

por Fernando Lopes, 29 Fev 16

Procuramos descrever cores, odores, sensações de forma original. Nem sempre o conseguimos, outras vezes sobre surpreendidos pela simplicidade da coisa.

 

No fumatório da minha empresa estava uma colega com um pensativo cigarro entre os dedos. Olhava para longe, melancolicamente. Por certo não estava ali.

 

- Então Margarida? Algum problema?

- Foi o meu carro. Começou a não andar e tive de chamar o reboque. Lá vem mais uma despesa.

- E o que aconteceu?

- Carregava no acelerador e o carro não andava embora o motor trabalhasse. Ficou parado numa subida. Olhei para a temperatura mas estava normal. Quando saí o carro tinha um cheiro a funileiro.

 

«Cheiro a funileiro» é a metáfora odorífera mas bonita que alguma vez ouvi para descrever um carro que acabou de queimar a embraiagem.

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