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Segurança Social.

por Fernando Lopes, 27 Fev 16

O vizinho da frente da minha aldeia é um homem pequenino, muito sujo, sempre com uma daquelas boinas antigas com um pico espetado no centro. A casa, degradada, está entre um caminho de pedras grandes e irregulares, da largura de um carro, à esquerda. Do lado direito outro pequeno trilho, ainda mais estreito e estranhamente asfaltado, como se num afã de modernização alguém começasse a colocá-lo onde é inútil.

 

Na frente da velha casa cirandam galinhas e patos num aparente abandono. Nos dias de sol pode ver-se a mulher, paralítica e demente, sentada numa cadeira de rodas a gritar ou murmurar angústia e medos imperceptíveis.

 

Quando passo por ele e lhe dou os bons-dias o cumprimento é sempre precedido de uma passar da mão pela camisola, como que a limpá-la para apertar a do ilustre vizinho ocasional. Não mais trocamos que amenidades, uma ou outra palavra sobre o tempo, a falta de melhoras da sua senhora.

 

Toda aquela miséria, abandono, o desprezo dos vizinhos, fizeram-me perguntar sobre a sua subsistência. O normal por aquelas bandas, uma leira de terra aqui e ali, uma corte e um porco que lhe asseguram alguma carne. E a Segurança Social. Vai uma carinha e duas mulheres, algumas vezes por semana, levar refeições quentes, higiene à mulher, uma ou outra varridela no casebre. Sem este apoio provavelmente não conseguiriam sobreviver, já que é apenas de sobrevivência que se trata.

 

Por estas e outras me contorço todo quando oiço os liberais de pacotilha debitarem doutos pareceres sobre o excesso de despesa da segurança social.

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13 comentários

De Lucília a 28.02.2016 às 11:56

São deliciosas estas pessoas, tão deliciosas e um mundo assim..

De Fernando Lopes a 28.02.2016 às 13:42

A aldeia é bonita pela paz, natureza, animais. As pessoas são exactamente iguais às da cidade, com intrigas, invejas, desprezos, manhas. 

De Ana A. a 28.02.2016 às 12:58

Adoro esta forma de escrita, clara e despretensiosa, que nos transporta para o ambiente, físico e psicológico, descrito e dá vontade de ler mais e mais...
Quanto ao conteúdo, na mouche , como sempre!

De Fernando Lopes a 28.02.2016 às 13:45

Obrigado, Ana. Inibem-me sempre as descrições porque por muito visual que se tente ser há pormenores que escapam e fazem toda diferença. E viva o estado social. :)

De pimentaeouro a 28.02.2016 às 20:16

Para esses cavalheiros a miséria não existe e os pobres não querem trabalhar. Quantos países temos?

De Fernando Lopes a 28.02.2016 às 20:53

Talvez a segurança social abrangente, como a conhecemos hoje, seja a maior conquista do 25 de Abril. É uma das coisas porque vale a pena lutar.

De golimix a 05.03.2016 às 10:21

As vezes que eu já ouvi isso!!!
Essa malta precisava de sair de trás de uma secretária...

De Luís Coelho a 29.02.2016 às 15:59

É uma tristeza (melhor: uma vergonha), 40 anos depois de Abril, ver tanta indigência e tanto analfabetismo contrastando com a abastança de uma classe política que pouco mais tem feito do que olhar pela sua própria vidinha.
Porque o homem é naturalmente egoísta, a Segurança Social é para muitos uma luz no meio das trevas.
Escrevesse eu tão bem como o Fernando, deixava aqui um tratado sobre o que as políticas de direita têm vergonhosamente feito aos mais desprotegidos.

De Fernando Lopes a 29.02.2016 às 19:12

O problema Luís, são as assimetrias. Custa-me entender que num país europeu haja um fosso entre ricos e pobres que mimetiza o que se passa no terceiro mundo. Não sendo contra os ricos, seria bem necessária um política mais redistributiva .

De golimix a 05.03.2016 às 10:30

Fernando costumo dizer, e isto a par das visitas domiciliarias que fazia por aqui, neste Trás-os-Montes (de pessoas tristes e que votam sempre nos mesmos), que se passa mais frio aqui do quem em países onde existem temperaturas negativas abaixo de 20, 30 e até 40ºC! Cheguei a ter mais frio dentro das casas do que fora delas! Agora imagina a dor de alma que é, destapar alguém, sossegado no seu leito, para lhe curar as muitas chagas que o acometem! Há muita miséria por este país! Aqui, neste norte perdido, parece que está meia esquecida. Felizmente vai existindo os cuidados continuados e os paliativos. Mas há limite de camas e um critério a cumprir.

A comida que lhes chega e a ajuda, fornecida pela S.S., é uma estrela pequenina que ilumina no meio da miséria. Mas, mesmo assim, ouço muitas vezes dizer que agora ninguém passa fome e não há miséria! Há tantos tipos de miseráveis.....

De Fernando Lopes a 05.03.2016 às 10:52

Sei bem que até por questões profissionais tens uma noção ampliada da pequena realidade que descrevo. A fome, como a minha avó a descreveu nos anos 20 e 30 do século passado talvez não exista, mas há muitas variantes de miséria. No Minho do meu coração, aqui no Porto, também me deparo com muito casos de abandono. E não há nada pior que essa forma de não-existência.

De Anónimo a 15.03.2016 às 18:40

Trabalhei durante 6 anos numa conhecida Instituição sita na R. Nossa Senhora de Fátima (Boavista). Sou formada na área social e sempre trabalhei com (e para) idosos. Um trabalho gratificante, mas duro... Tão dura esta realidade que está bem diante dos nossos olhos que muitas vezes preferimos não olhar, como canta a Mafalda Veiga:
"...o olhar triste e cansado procurando alguém 
e a gente passa ao seu lado a olhá-lo com desdém 
sabes eu acho que todos fogem de ti para não ver 
a imagem da solidão que irão viver 
quando forem como tu 
um velho sentado num jardim."
Todos os dias tinha casos sociais graves, em que a miséria de afectos e financeira nos fazem sentir impotentes em tentar soluciona-los. Sim, a S.S. e devidos apoios sociais não estão implementados de forma eficaz, mas a maior parte das vezes, só com esses pequenos apoios conseguimos amplificar o nosso trabalho e chegar mais perto de quem precisa. 
Após 6 anos (e com situação profissional estável) resolvi dar o salto! Mudei de país e mudei de emprego! A Instituição Humanitária para a qual trabalhava deixou de fazer sentido para mim quando a Presidente dessa Instituição foi acusada, julgada e condenada por crime de peculato. De ressalvar que continua a assumir funções de presidente na dita Instituição! Como poderia eu, uma reaccionária, mulher de afectos e idealista, ser conivente com tais actos?! 
Com 31 anos deixei o meu país, a minha família, os meus amigos,  os meus idosos e embarquei numa aventura para a Polónia!
Estou em Cracóvia há 1 ano e 3 meses. Tentei em várias Instituições inscrever-me como voluntária, mas como não falo polaco nunca fui aceite... Pois bem lhes explicava (em inglês) que poderia fazer tarefas que não implicassem falar (ajudar na confecção de refeições, limpeza ou outro tipo de tarefas, e sempre me negaram a inscrição). E aqui a situação de apoios sociais em nada está melhor que em Portugal!
Estou a trabalhar numa área que não a minha, num país frio... frio de afectos, frio de pessoas, frio de sorrisos e abraços. Mas vou caminhando, sorrindo e abraçando colegas de trabalho... sorrindo para mim e para o sol que vive dentro de mim.  
Continuo esperançada que o mundo se torne melhor! Que as pessoas se respeitem, que deixem de viver com falsos moralismos e olhem o próximo como uma extensão de nós mesmos...Que se olhem. Que se olhem através da alma, com intensidade e sejam gratas e compassivas.
Continuo com sonhos! E continuarei a sonhar. Com esta intensidade que sempre me caracterizou, com esta fluidez de alma que sempre me acompanhou. Se vos parece complicado entender como vivo na intensidade e na fluidez?! Bem, sou eu! simplesmente eu... vivo assim, num barulho ensurdecedor de pensamentos e emoções! 
E continuarei a lutar pelas pessoas. Acredito no melhor de cada um e sou feliz assim! Tola, mas feliz! 
Um abraço de uma Margarida que teima em florescer neste clima tão frio... 

De Fernando Lopes a 15.03.2016 às 20:00

O seu testemunho tão pessoal vale muito mais que o post.. Resta-me agradecer-lhe e deixar uma luz de esperança pessoal e profissional. Não sendo homem de fé, acredito na capacidade transformadora dos afectos.


Abraço.

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