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Artur.

por Fernando Lopes, 15 Set 16

Mal abrem a porta entra-me pelas narinas aquele odor característico dos lares, uma mistura indefinível de urina, lixívia, e desinfectante perfumado. Um velho caminha sem rumo apoiado por duas bengalas. Pelo corredor circulam as auxiliares, bata rosa, as enfermeiras de branco vestidas, pobre imitação de querubim. Ao fundo do corredor a enfermaria, de onde uns irão sair recuperados, outros para os tratos de um qualquer gato pingado. Desço o elevador para a sala de convívio e refeitório. É hora de almoço, apenas dois resistentes no sofá a olhar hipnotizados para o ecrã da televisão. Na sala de refeições a comida tem o aspecto de papa. Sei que assim é porque a maioria dos comensais há muito perdeu os dentes ou mais não tem que uma placa que obstinadamente lhes dança na boca como se tivesse vida e vontade própria. Muitos têm uns enormes babetes plásticos, como se fossem crianças ou estivessem numa qualquer festa da lagosta.

 

A vida num lar é como jogar à roleta russa sem arma.

 

A um canto uma senhora numa cadeira de rodas. Muito encolhida e enrugada, já pouco maior é que uma criança de seis ou sete anos. Sobre o colo um xaile rosa, talvez ainda feito à mão, talvez uma peça barata comprada nos chineses. A cabeça tomba-lhe sobre a esquerda enquanto murmura qualquer coisa incompreensível. Depois desata a gritar:

 

- Ó Artur, Artur! Ó Artur.

 

Faz isto uma meia-dúzia de vezes, pára e logo recomeça. Alguém me conta que chama pelo marido, morto há mais de vinte anos. Assim que recomeça a gritar alguém lhe diz:

 

- Estou aqui, está sossegada.

 

Sorri tranquilizada, e de um modo só seu, regressa aos braços de Artur.  

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31 comentários

De Fernando Lopes a 15.09.2016 às 12:19

Como na roleta russa, sabe-se sempre como termina.

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